Cotas, entre afirmações e afirmativas

UnB foi a primeira universidade federal a adotar sistema de cotas raciais


UnB reserva vagas para negros desde o vestibular de 2004


Percentual de negros com diploma cresceu quase quatro vezes desde 2000, segundo IBGE

O dia 20 de Novembro é de celebração. Ou ao menos é assim que nos foi ensinado. Dia da Consciência Negra é, para todos os efeitos, um dia de memória. Um dia onde a sociedade brasileira se volta para o legado africano, seja em reverência, seja em celebração, seja em luto. A realidade simbólica é simples e contundente: constitui um movimento em âmbito nacional, um dia para marcar a luta, resistência e cultura afro-brasileira.
Nesse mesmo dia, ainda neste ano, aqui em Maringá as cotas raciais passam pelo crivo da assembleia universitária da UEM. O apelo beira a unanimidade e a certeza de que o caminho tomado é o certo é óbvio. Agora, consoante a muitas outras, a Universidade Estadual de Maringá se insere no repertório de instituições de ensino que buscam uma democratização efetiva da educação em nosso país. Link para o Podcast: https://soundcloud.com/davi-a-s-rocha-br-colis/cotas-entre-afirmacoes-e

Ainda sim, o percurso tomado para chegar a esse resultado tão importante para a história da instituição vai para além dos portões da mesma. Na realidade, a história nos evidencia uma realidade conflituosa desde os níveis mais iniciais dessa luta. Ou seja, assim como todo o legado dos conflitos raciais já testifica, a conquista de políticas afirmativas para acesso democratizante ao ensino superior se tornou mais uma frente.
No início do artigo “Cotas Raciais na UnB: lições de um equívoco”¹, de Bernardo Lewgoy, o autor considera:
A experiência da África do Sul, dos Estados Unidos e da Alemanha nazista são algumas das poucas referências de conjugação entre Ciência e Estado na objetivação de "raças", e deveriam ser suficientes para nos convencer de que, assim como o Estado moderno deve ser laico e impessoal em sua valorização dos cidadãos, deve também ser desracializado em suas políticas públicas.” (LEWGOY, 2005)

Nesse período a implantação das cotas raciais estava engatinhando, no entanto o argumento contra as políticas afirmativas já estava se consolidando. Apesar de que há um certo consenso acadêmico a respeito da necessidade das cotas sociais, uma vez que o quadro político, social e econômico brasileiro é de uma selvageria sem tamanho, políticas afirmativas de cunho racial passaram a se tornar uma forma de antagonismo ao caminho racional. Caminho este que, para autores como Lewgoy, estão intimamente ligados a métodos de planificação racial. Excluindo o elemento da raça como fator social legítimo.
Sendo antropólogo, Lewgoy apresenta uma sinceridade autêntica a respeito de como, para a época, as metodologias de avaliação e conceituação racial levavam o Estado e a sociedade a postular discursos racialistas. No entanto, o autor parece passivo demais frente aos empecilhos vividos pela comunidade negra no Brasil.
Pode o "racismo à brasileira" ser combatido pela oficialização de identidades raciais? Tal como o feitiço usado contra o feiticeiro, pode existir o bom racismo, de nobres finalidades, politicamente correto, reparador de injustiças históricas e provisório em sua aplicação? De modo algum: usar a racialização oficial para combater o racismo é mais ou menos como combater um incêndio usando gasolina. É preciso desracializar com urgência o combate ao racismo e à exclusão social, através de políticas igualitárias de inclusão, inspiradas no ideário universalista. Esta é, a meu juízo, a perspectiva mais condizente com a boa tradição da antropologia.” (LEWGOY, 2005)

Bernardo Lewgoy não está sozinho em sua crítica. O artigo de Elizabeth Balbachevsky, “Cotas raciais, não! Cotas associadas a níveis de renda, sim!” até soa inadvertidamente cínico.
“Realmente não consigo entender por que um jovem branco pobre deve concorrer em desvantagem em relação ao seu colega que tem a pele mais escura. Do ponto de vista do capital social e de sua herança cultural, ambos estão enfrentando as mesmas desvantagens: ambos são filhos de famílias sem experiência escolar prévia, ambos tiveram pouco acesso a todas as fontes de cultura, etc etc....” (BALBACHEVSKY, 2010)

O argumento parte do pressuposto que brancos e negros em igual condição socioeconômica estão fundamentalmente disputando pelos mesmos espaços. A autora ainda reitera a insuficiência do aluno cotista frente ao sistema de ensino superior. Sendo assim, Balbachevsky parece não ter receio algum em perpetuar o raciocínio supracitado como algo fundamentalmente bom de se evidenciar. Ou seja, a autora aparenta acreditar que está ajudando.
Mas o que são as ações afirmativas?
“O termo Ação Afirmativa refere-se a um conjunto de políticas públicas para proteger minorias e grupos que, em uma determinada sociedade, tenham sido discriminados no passado. A ação afirmativa visa remover barreiras, formais e informais, que impeçam o acesso de certos grupos ao mercado de trabalho, universidades e posições de liderança. Em termos práticos, as ações afirmativas incentivam as organizações a agir positivamente a fim de favorecer pessoas de segmentos sociais discriminados a terem oportunidade de ascender a postos de comando.” (OLIVEN. 2007)

As práticas de Ação Afirmativa não são exclusivas ao Brasil. Oliven (2007) apresenta sua análise comparativa entre as práticas testemunhadas aqui e nos Estados Unidos. Ainda reitera que para além das sociedades ocidentais ou ocidentalizadas, “a Índia, por exemplo, reserva um percentual de vagas em suas universidades públicas a castas consideradas inferiores, os dalits ou “intocáveis” (OLIVEN, 2007). Temos então que as políticas de cotas são um tema internacional.
A autora, avaliando a história das ações afirmativas no Brasil e nos EUA, apresenta um comparativo valioso para evidenciar a luta pela democratização do ensino. No caso americano, temos que:
“Para Takaki (1994), asiático-americano e professor da Universidade da Califórnia, os críticos das políticas de ação afirmativa, muitas vezes, omitem o fato de que através da história norte-americana, houve sempre discriminação positiva para homens brancos, que se beneficiaram, durante muito tempo, de oportunidades educacionais e profissionais que lhes eram reservadas. Eles desfrutavam de inúmeras vantagens sociais, sem terem de enfrentar a concorrência de mulheres e de minorias consideradas não brancas. Na medida em que essas vantagens eram repassadas a seu filhos brancos, por gerações e gerações, elas se tornavam cumulativas.” (OLIVEN, 2007)

Isso demonstra o impacto social das cotas sobre a realidade americana, uma sociedade construída, assim como a nossa, sobre os pilares do racismo institucional e estrutural. No caso brasileiro, mesmo levando em consideração a diferença numérica do povo afro-brasileiro em relação ao afro-americano, os problemas são ainda mais profundos.
Não houve inserção do povo negro na intelectualidade brasileira, não de forma ampla e constante como a presença branca o fez. A realidade estadunidense inclui instituições de ensino superior criadas exclusivamente, ainda no século XIX, para atender a comunidade negra daquele país. Se você vê nisso uma forma de separar os grupos raciais, não está totalmente errado… Mas os efeitos, a formação de uma intelectualidade negra independente, esse resultado foi mais do que bem vindo.
Se traçarmos uma breve linha do tempo com os links apresentados abaixo veremos um fenômeno revolucionário se consolidando graças às políticas afirmativas. Se em 2017 34% da comunidade universitária era negra, em 2019, pela primeira vez na história deste país, são mais da metade. Comparando os dados aos tempos anteriores as cotas, ainda em 2000, temos que apenas 2,2% dos graduandos pardos ou negros chegariam a se formar.
Pode soar apenas como um dado estatístico, mas a presença do povo negro na educação superior é um passo inegável em direção a uma sociedade brasileira mais justa. A posição dos contrários as cotas vêm sendo solapadas pelos resultados promissores. Afinal de contas, quantos médicos ou médicas negros(as) vocẽ já foi atendido? Quantos professores ou professoras? Quando advogados ou advogadas? Quantos empresários? Quantos negros você viu em posições de destaque? Pois bem, acho que tudo isso se tornará rotina… Em nome da justiça, finalmente.
A propósito, um professor negro da UNESP, doutor pela USP, foi esfaqueado e chamado “macaco” entre outras injúrias raciais ainda nessa quarta-feira (20/11). Em pleno dia, em plena Consciência Negra. Mas essa é uma outra história...


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